4.3.10

O IMPÉRIO DO CONSUMO

O IMPÉRIO DO CONSUMO
por Eduardo Galeano
A explosão do consumo no mundo atual faz mais barulho do que todas as guerras e mais
algazarra do que todos os carnavais. Como diz um velho provérbio turco, aquele que bebe a
conta, fica bêbado em dobro. A gandaia aturde e anuvia o olhar; esta grande bebedeira
universal parece não ter limites no tempo nem no espaço.
Mas a cultura de consumo faz muito barulho, assim como o tambor, porque está vazia; e na
hora da verdade,quando o estrondo cessa e acaba a festa, o bêbado acorda, sozinho,
acompanhado pela sua sombra e pelos pratos quebrados que deve pagar. A expansão da
demanda se choca com as fronteiras impostas pelo mesmo sistema que a gera. O sistema
precisa de mercados cada vez mais abertos e mais amplos tanto
quanto os pulmões precisam de ar e, ao mesmo tempo, requer que estejam no chão, como
estão, os preços das matérias primas e da força de trabalho humana. O sistema fala em nome
de todos, dirige a todos suas imperiosas ordens de consumo, entre todos espalha a febre
compradora; mas não tem jeito: para quase todo o mundo esta aventura começa e termina na
telinha da TV. A maioria, que contrai dívidas para ter coisas, termina tendo apenas dívidas para
pagar suas dívidas que geram novas dívidas, e acaba consumindo fantasias que, às vezes,
materializa cometendo delitos. O direito ao desperdício, privilégio de poucos, afirma ser a
liberdade de todos.
Dize-me quanto consomes e te direi quanto vales. Esta civilização não deixa as flores dormirem,
nem as galinhas, nem as pessoas. Nas estufas, as flores estão expostas à luz contínua, para
fazer com que cresçam mais rapidamente. Nas fábricas de ovos, a noite também está proibida
para as galinhas. E as pessoas estão condenadas à insônia, pela ansiedade de comprar e pela
angústia de pagar. Este modo de vida não é muito bom para as pessoas, mas é muito bom para
a indústria farmacêutica. Os EUA consomem metade dos calmantes, ansiolíticos e demais
drogas químicas que são vendidas legalmente no mundo; e mais da metade das drogas
proibidas que são vendidas ilegalmente, o que não é uma coisinha à-toa quando se leva em
conta que os EUA contam com apenas cinco por cento da população mundial.
«Gente infeliz, essa que vive se comparando»,lamenta uma mulher no bairro de Buceo, em
Montevidéu. A dor de já não ser, que outrora cantava o tango, deu lugar à vergonha de não ter.
Um homem pobre é um pobre homem. «Quando não tens nada, pensas que não vales nada»,
diz um rapaz no bairro Villa Fiorito, em Buenos Aires. E outro confirma, na cidade dominicana
de San Francisco de Macorís: «Meus irmãos trabalham para as marcas. Vivem comprando
etiquetas, e vivem suando feito loucos para pagar as prestações».
Invisível violência do mercado: a diversidade é inimiga da rentabilidade, e a uniformidade é que
manda. A produção em série, em escala gigantesca, impõe em todas partes suas pautas
obrigatórias de consumo. Esta ditadura da uniformização obrigatória é mais devastadora do que
qualquer ditadura do partido único: impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz
seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar.
O consumidor exemplar é o homem quieto. Esta civilização, que confunde quantidade com
qualidade, confunde gordura com boa alimentação. Segundo a revista científica The Lancet, na
última década a «obesidade mórbida» aumentou quase 30% entre a
população jovem dos países mais desenvolvidos. Entre as crianças norte-americanas, a
obesidade aumentou 40% nos últimos dezesseis anos,segundo pesquisa recente do Centro de
Ciências da Saúde da Universidade do Colorado. O país que inventou as comidas e bebidas
light, os diet food e os alimentos fat free, tem a maior quantidade de gordos do mundo. O
consumidor exemplar desce do carro só para trabalhar e para assistir televisão. Sentado na
frente da telinha, passa quatro horas por dia devorando comida plástica.
Vence o lixo fantasiado de comida: essa indústria está conquistando os paladares do mundo e
está demolindo as tradições da cozinha local. Os costumes do bom comer, que vêm de longe,
contam, em alguns países, milhares de anos de refinamentoe diversidade e constituem um
patrimônio coletivo que, de algum modo,está nos fogões de todos e não apenas na mesa dos
ricos. Essas tradições, esses sinais de identidade cultural, essas festas da vida,estão sendo
esmagadas, de modo fulminante, pela imposição do saber químico e único: a globalização do
hambúrguer, a ditadura do fast food. A plastificação da comida em escala mundial, obra do
McDonald´s, do Burger King e de outras fábricas, viola com sucesso o direito à
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autodeterminação da cozinha: direito sagrado, porque na boca a alma tem uma das suas
portas.
A Copa do Mundo de futebol de 1998 confirmou para nós, entre outras coisas, que o cartão
Máster Card tonifica os músculos, que a Coca-Cola proporciona eterna juventude e que o
cardápio do McDonald´s não pode faltar na barriga de um bom atleta. O imenso exército do
McDonald´s dispara hambúrgueres nas bocas das crianças e dos adultos no planeta inteiro. O
duplo arco dessa M serviu como estandarte, durante a recente conquista dos países do Leste
Europeu.
As filas na frente do McDonald´s de Moscou, inaugurado em 1990 com bandas e fanfarras,
simbolizaram a vitória do Ocidente com tanta eloqüência quanto a queda do Muro de Berlim.
Um sinal dos tempos:essa empresa, que encarna as virtudes do mundo livre, nega aos seus
empregados a liberdade de filiar-se a qualquer sindicato. O McDonald´s viola, assim, um direito
legalmente consagrado nos muitos países onde opera. Em 1997, alguns trabalhadores,
membros disso que a empresa chama de Mac família, tentaram sindicalizar-se em um
restaurante de Montreal,no Canadá: o restaurante fechou. Mas, em 98, outros empregados do
McDonald´s, em uma pequena cidade próxima a Vancouver, conseguiram essa conquista, digna
do Guinness.
As massas consumidoras recebem ordens em um idioma universal: a publicidade conseguiu
aquilo que o esperanto quis e não pôde.
Qualquerum entende, em qualquer lugar, as mensagens que a televisão transmite.No último
quarto de século, os gastos em propaganda dobraram no mundotodo. Graças a isso, as crianças
pobres bebem cada vez mais Coca-Cola ecada vez menos leite e o tempo de lazer vai se
tornando tempo deconsumo obrigatório. Tempo livre, tempo prisioneiro: as casas muitopobres
não têm cama, mas têm televisão, e a televisão está com apalavra. Comprado em prestações,
esse animalzinho é uma prova davocação democrática do progresso: não escuta ninguém, mas
fala paratodos.
Pobres e ricos conhecem, assim, as qualidades dos automóveis do último modelo, e pobres e
ricos ficam sabendo das vantajosas taxas de juros que tal ou qual banco oferece. Os
especialistas sabem transformar as mercadorias em mágicos conjuntos contra a solidão. As
coisas possuem atributos humanos: acariciam, fazem companhia, compreendem, ajudam, o
perfume te beija e o carro é o amigo que nunca falha. A cultura do consumo fez da solidão o
mais lucrativo dos mercados.
Os buracos no peito são preenchidos enchendo-os de coisas, ou sonhando com fazer isso. E as
coisas não só podem abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvocondutos
para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem as portas
proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas escolhem você e salvam você do
anonimato das multidões. A publicidade não informa sobre o produto que vende, ou faz isso
muito raramente. Isso é o que menos importa. Sua função primordial consiste em compensar
frustrações e alimentar fantasias. Comprando este creme de barbear, você quer se transformar
em quem?
O criminologista Anthony Platt observou que os delitos das ruas não são fruto somente da
extrema pobreza. Também são fruto da ética individualista. A obsessão social pelo sucesso, diz
Platt, incide decisivamente sobre a apropriação ilegal das coisas. Eu sempre ouvi dizer que o
dinheiro não trás felicidade; mas qualquer pobre que assista televisão tem motivos de sobra
para acreditar que o dinheiro trás algo tão parecido que a diferença é assunto para
especialistas.
Segundo o historiador Eric Hobsbawm, o século XX marcou o fim de sete mil anos de vida
humana centrada na agricultura, desde que apareceram os primeiros cultivos, no final do
paleolítico. A população mundial torna-se urbana, os camponeses tornam-se cidadãos. Na
América Latina temos campos sem ninguém e enormes formigueiros urbanos: as maiores
cidades do mundo, e as mais injustas. Expulsos pela agricultura moderna de exportação e pela
erosão das suas terras, os camponeses invadem os subúrbios. Eles acreditam que Deus está em
todas partes, mas por experiência própria sabem que atende nos grandes centros urbanos.
As cidades prometem trabalho, prosperidade, um futuro para os filhos. Nos campos, os
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esperadores olham a vida passar, e morrem bocejando; nas cidades, a vida acontece e chama.
Amontoados em cortiços, a primeira coisa que os recém chegados descobrem é que o trabalho
falta e os braços sobram, que nada é de graça e que os artigos de luxo mais caros são o ar e o
silêncio.
Enquanto o século XIV nascia, o padre Giordano da Rivalto pronunciou, em Florença, um elogio
das cidades. Disse que as cidades cresciam «porque as pessoas sentem gosto em juntar-se».
Juntar-se, encontrar-se. Mas, quem encontra com quem? A esperança encontra-se com a
realidade? O desejo, encontra-se com o mundo? E as pessoas, encontram-se com as pessoas?
Se as relações humanas foram reduzidas a relações entre coisas, quanta gente encontra-se
comas coisas?
O mundo inteiro tende a transformar-se em uma grande tela de televisão, na qual as coisas se
olham mas não se tocam. As mercadorias em oferta invadem e privatizam os espaços públicos.
Os terminais de ônibus e as estações de trens, que até pouco tempo atrás eram espaços de
encontro entre pessoas, estão se transformando, agora, em espaços de exibição comercial. O
shopping center, o centro comercial, vitrine de todas as vitrines, impõe sua presença
esmagadora. As multidões concorrem, em peregrinação, a esse templo maior das missas do
consumo. A maioria dos devotos contempla, em êxtase, as coisas que seus bolsos não podem
pagar, enquanto a minoria compradora é submetida ao bombardeio da oferta incessante e
extenuante. A multidão, que sobe e desce pelas escadas mecânicas, viaja pelo mundo: os
manequins vestem como em Milão ou Paris e as máquinas soam como em Chicago; e para ver e
ouvir não é preciso pagar passagem. Os turistas vindos das cidades do interior, ou das cidades
que ainda não mereceram estas benesses da felicidade moderna, posam para a foto, aos pés
das marcas internacionais mais famosas, tal e como antes posavam aos pés da estátua do
prócer na praça.
Beatriz Solano observou que os habitantes dos bairros suburbanos vão ao center, ao shopping
center, como antes iam até o centro. O tradicional passeio do fim-de-semana até o centro da
cidade tende a ser substituído pela excursão até esses centros urbanos. De banho tomado,
arrumados e penteados, vestidos com suas melhores galas, os visitantes vêm para uma festa à
qual não foram convidados, mas podem olhar tudo. Famílias inteiras empreendem a viagem na
cápsula espacial que percorre o universo do consumo,onde a estética do mercado desenhou
uma paisagem alucinante de modelos,marcas e etiquetas.
A cultura do consumo, cultura do efêmero,condena tudo à descartabilidade midiática. Tudo
muda no ritmo vertiginoso da moda, colocada à serviço da necessidade de vender. As coisas
envelhecem num piscar de olhos, para serem substituídas por outras coisas de vida fugaz. Hoje,
quando o único que permanece é a insegurança, as mercadorias, fabricadas para não durar, são
tão voláteis quanto o capital que as financia e o trabalho que as gera. O dinheiro voa na
velocidade da luz: ontem estava lá, hoje está aqui, amanhã quem sabe onde, e todo
trabalhador é um desempregado em potencial.
Paradoxalmente, os shoppings centers, reinos da fugacidade, oferecem a mais bem-sucedida
ilusão de segurança. Eles resistem fora do tempo, sem idade e sem raiz, sem noite e sem dia e
sem memória, e existem fora do espaço, além das turbulências da perigosa realidade do
mundo.
Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida
efêmera, que se esgota assim como se esgotam, pouco depois de nascer, as imagens
disparadas pela metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade lança, sem
pausa, no mercado. Mas, para qual outro mundo vamos nos mudar? Estamos todos obrigados a
acreditar na historinha de que Deus vendeu o planeta para umas poucas empresas porque,
estando de mau humor, decidiu privatizar o universo? A sociedade de consumo é uma
armadilha para pegar bobos.
Aqueles que comandam o jogo fazem de conta que não sabem disso, mas qualquer um que
tenha olhos na cara pode ver que a grande maioria das pessoas consome pouco, pouquinho e
nada, necessariamente, para garantir a existência da pouca natureza que nos resta. A injustiça
social não é um erro por corrigir, nem um defeito por superar: é uma necessidade essencial.
Não existe natureza capaz de alimentar um shopping center do tamanho do planeta.

3 comentários:

Unknown disse...

As massas consumidoras recebem ordens em um idioma universal: a publicidade conseguiu
aquilo que o esperanto quis e não pôde.


Prezado Eduardo primeiramente gostaria de vos parabenizar pois acompanho seu blog e gosto muito de vossos artigos.
Bom sobre a citação acima, gostaria de dizer que o senhor está equivocado, o esperanto não quer pra ele um rótulo de idioma universal mas sim um idioma transnacional, uma ferramenta simples e direta de comunicação, um língua que não privilegia ninguém, um idioma estruturalmente e gramaticalmente simples e que tem um custo-benefício muito grande, a meu ver sua comparação do esperanto com a publicidade ne tauxgas (não é propício).
Muito obrigado por vossa atenção.
Pietro von Herts Júnior.´.

Protesto disse...

Adorei o texto.

Crítico e verdadeiro.

Muito bom mesmo.

Também escrevo sobre o consumismo no meu blog.

Bruno Cardoso: Blog de geografia disse...

Muito boa esta publicação. Acredito que a realidade retilínea do modo de produção capitalista está encontrando o seu apogeu, justamente na beira de uma crise sem igual para toda a humanidade. E tudo isso é movido pelas propagandas disputadas a metro quadrado, principalmente nos centros urbanos, que fazem agente consumir mais e mais. Excelente material Eduardo, Parabéns!